Valeu a pena, Jimmy?
- Augusto Casoni
- 31 de jul. de 2022
- 6 min de leitura
Hoje, vamos com algo diferente. Foge um pouco do que eu costumo fazer por aqui, mas não deixa de ser um dos intuitos iniciais desta página: vou falar sobre uma série que assisto, talvez especialmente sobre um episódio específico, mas pra isso preciso falar sobre ela como um todo, talvez até mais do que apenas sobre ela.
A maioria de vocês provavelmente não a conhece, mas é possível que sua origem sim. Breaking Bad, a série sobre um professor de química de classe média que resolve virar um traficante de metanfetamina após descobrir que está morrendo de câncer, que estreou em 2008 e terminou em 2013, é a série que deu origem a esta sobre a qual vou falar - Better Call Saul.
Trata-se de um “prequel”, termo em inglês que, se vocês me confiam uma livre tradução, é algo como “prequência”, ou seja, a "sequência que veio antes”. Como ainda não temos uma palavra em português para isso, explico melhor. É uma série que trata sobre acontecimentos anteriores a Breaking Bad, mais especificamente sobre acontecimentos da vida de Jimmy McGill: um jovem trambiqueiro que se tornará o advogado Saul Goodman, ainda trambiqueiro, ajudante e comparsa de crime de Walter White - o professor de química/traficante. Saul será muito importante na jornada de White, sendo responsável por lavar seu dinheiro ilegal, engambelar policiais e armar esquemas de falsificações no geral.
Contexto da série anterior estabelecido, vamos às definições gerais sobre o prequel. Jimmy é um advogado “de porta de cadeia” como diríamos aqui em terras tupiniquins. Ardiloso, esperto, mas sem nenhuma credibilidade, Jimmy atua em pequenos casos no fórum local, ganhando quase nada e precisando viver de outras coisas como pequenos golpes em seguros e enganar bêbados em bares.
Sem entrar em muitos detalhes, vou avançar até a sexta e última temporada, que é a que estamos atualmente, até porque não quero te dar muitos spoilers e se esse texto te convencer a começar a assisti-la, vai lá, vale muito a pena e na minha opinião, não, você não precisa ver todo Breaking Bad.
A não ser por um detalhe. Apesar de ser uma “prequência”, como eu disse, Better Call Saul, em breves momentos, intercala o Saul pós-Breaking Bad com o passado cronológico que estamos acompanhando. Então, tenha em mente que as partes em preto e branco são o presente de Saul Goodman - agora conhecido como Gene Takovic, um gerente de uma loja de fast-food em um estado muito longe do qual vivia quando era advogado e no qual não é conhecido por ninguém. Um homem solitário, vivendo no anonimato, tudo que um foragido da lei precisa.
E é justamente neste contexto que um dos melhores episódios da série acontece. Toda a história deste episódio está centrada no pós queda de Walter White, na rotina do, agora, Gene Takovic. Acompanhamos como Gene se aproxima de um taxista que o reconheceu como Saul Goodman. Sua intenção é propor ao taxista uma oportunidade de dar um golpe e assim entender como “entrar no jogo”, ter uma experiência de tirar vantagem e sair ileso e com lucros.
O golpe é simples: roubar uma loja de roupas no shopping onde Gene trabalha. A complicação está na execução. Com o pretexto de agradecer um antigo favor, Gene, após o expediente, faz uma visita à sala de segurança do shopping e oferece ao guarda noturno um doce de sua franquia de fast-food. Enquanto o policial se delicia com a comida gordurosa e açucarada e conversa com o novo colega, fica distraído e para de observar as câmeras de segurança. Gene - ou deveria dizer, Saul? ou Jimmy? - cronometra o tempo que dura o deleite do guarda e encontra uma “janela” de pouco mais de três minutos onde a segurança das lojas está completamente comprometida, sem vigilância. Aos poucos e dia após dia, Gene consegue estabelecer suas visitas ao colega como rotina diária, sendo cada vez mais bem recebido e garantindo a - sempre pontual - enrolação constante de três minutos e pouco.
Com mais algumas mentiras e alguma criatividade, o taxista, agora comparsa de Gene, é posicionado na zona de descargas da loja escondido em uma caixa. Quando o guarda começa seu banquete, Gene aciona o comparsa através de uma mensagem de celular e este, então, ciente da janela de três minutos, sai da caixa e começa a roubar diversas peças de roupas - algo já perfeitamente ensaiado previamente.
Em toda essa elaboração que tentei descrever da maneira mais compreensível possível, temos uma das melhores qualidades de Jimmy: o planejamento meticuloso. Extremamente perfeccionista, o golpista não poupa criatividade e tempo para que tudo saia da melhor maneira possível.
Agora, aquilo que me motivou a escrever hoje não está nessa qualidade, mas sim naquela que aparece logo em seguida: o improviso. O taxista, durante a pressa para pegar as peças de roupa, escorrega e bate a cabeça no chão, ficando desacordado por alguns segundos. Vendo que os três minutos estavam acabando, Gene se desespera e chega a engasgar com o café que está tomando durante a conversa/distração com o guarda. Para impedir que as telas que mostram o que vêem as câmeras de segurança sejam olhadas pelo guarda, Jimmy começa a chorar e desabafar, ganhando alguns segundos extras, suficientes para finalizar o golpe após o despertar do comparsa desastrado.
A questão é que, durante o desabafo, o conteúdo do lamento, apesar de estar sendo manipulado por um farsante, é extremamente verdadeiro. “Eu não tenho ninguém, meus pais morreram, meu irmão morreu. Eu não tenho esposa, não tenho filhos, se eu morrer amanhã ninguém vai lembrar de mim e minha empresa achará um novo gerente em três dias”.
Veja, Jimmy está desesperado pois, se o golpe der errado, todo seu disfarce estará perdido. O resto de liberdade que ele tem será tolhido e provavelmente ele ficará preso pelo resto de sua vida. E no momento mais crucial de toda a sua história, que pode definir um final trágico, o único recurso para qual Jimmy consegue apelar é: dizer a verdade! Um golpista, que enganou pessoas a vida inteira mentindo, às vezes apenas para conseguir um jantar grátis ou alguns drinks, se vê obrigado a recorrer àquilo que mais lhe assusta e que talvez seja o que ele mais abomina.
Tanto é esse o sentimento, que, terminado o golpe, Gene sai da sala de segurança e tem algo muito próximo de um ataque de ansiedade nos corredores do shopping; na minha opinião, o que ocorre não apenas pela adrenalina da situação, mas também pelo contato com o mais íntimo de sua história - seu passado, seus erros, suas saudades, suas perdas.
O que me leva ao ponto central do texto de hoje. Jimmy conseguiu, sempre, fugir de quem é. Primeiro, conseguiu fugir de ser um advogado frustrado e que ganha pouco criando a figura de Saul Goodman, um vigarista, estrela de seus próprios comerciais de tv local e, para quem ainda não reparou, cujo próprio nome remete a um trocadilho canastrão (It’s all good, man: tá tudo certo, parceiro).
Depois, conseguiu fugir de Saul. Após contratar um serviço do submundo do crime, de um homem falsificador de documentos, Saul muda-se para outro estado e assume a identidade de Gene, um homem desconhecido, reservado e anônimo para todas as outras pessoas.
Jimmy só não conseguiu fugir do próprio Jimmy. Golpista nato, com um talento indiscutível para enganar pessoas, Jimmy arriscou todo seu futuro, apenas para dar um último golpe (algo próximo de ganhar 10 mil dólares com a revenda das peças roubadas) com a desculpa de que estava assegurando sua identidade ao barganhar com o homem que o reconheceu, mas que não parecia de fato representar uma grande ameaça.
Ao final do episódio, Gene vai à loja alvo de seu planejamento. Ninguém ainda descobriu nada - o indício final de sucesso da operação - e ele, então, aproveita para olhar algumas roupas. Seleciona uma camisa e uma gravata bem extravagantes, muito parecidas com as que estava acostumado a usar em outros tempos - outras vidas? - mas resolve deixá-las penduradas na loja. Quase como uma assinatura invisível de sua última obra de arte.
Acho que pra mim, além das muitas outras qualidades que a série, e em especial este episódio, apresentam, uma percepção PULULOU muito claramente e de forma muito marcante. Podemos, eventualmente, até conseguir fugir do que somos. Erros, faltas, perdas. Muito disso conseguimos esquecer e, eventualmente, superar. A questão é: por acaso conseguimos fugir do que queremos ser? É possível reprimir aquilo que acreditamos ser feitos para fazer? E o principal: vale a pena não ser aquilo que queremos?
Volto na próxima segunda, sabe-se lá com o quê. Espero que tenham gostado ou que no mínimo tenham ficado curiosos pela série. É uma das melhores que eu já vi, vale a tentativa.
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