O que escolhemos contar
- Augusto Casoni
- 24 de mar. de 2024
- 3 min de leitura
A experiência de “sair de casa” sempre envolve, me parece, algo amedrontador. Aliás, se isolarmos os significantes da expressão, teremos: “sair” e “casa”. Sair; expor-se, revelar-se, estar fora; vulnerável, portanto. Casa; aconchego, segurança, familiar; proteção, portanto. Para além do curioso processo que temos de buscar explicar sensações através do significado daquilo que dizemos, chamaria atenção para como este verbo e este substantivo podem parecer quase antônimos: “sair” e “casa”.
Algo que me estarrece cada dia mais é um processo que descobri durante a graduação de que, se você parar pra analisar, nenhuma palavra tem um significado pleno e estabelecido. Aliás eu diria que nenhuma palavra significa nada. Ou, se preferir, qualquer palavra pode significar qualquer coisa. Resumindo de maneira muito pobre e simples, com o perdão do empobrecimento da discussão, é como se quase sempre o conjunto de letras dependesse exclusivamente de seu contexto. Dessa forma, “sair de casa” pode significar um agradável passeio na praça de seu distrito, uma noite de diversão com conhecidos, uma mudança gigantesca de vida, fazer compras, um trauma terrível, mudar de cidade, de bairro, viajar, despedir-se, resgatar-se, enfim, acho que me explico. No meu caso, “sair de casa” significou já quase todas essas coisas. Atualmente significa estar fazendo um intercâmbio na Argentina.
Para mim, que já passei por mais de um processo de “saída”, tanto essa palavra quanto a palavra “casa” começam a esmorecer de sentido. É uma coisa meio heraclitiana: ninguém banha-se duas vezes no mesmo rio. Tanto as águas do rio, quanto o homem, já não são os mesmos no segundo banho, e tanto eu, quanto os lugares onde já estive e pessoas que já conheci, tampouco somos. No entanto, ainda assim nutrimos nossa identidade com base em algo de “onde pertencemos”, uma “casa”, talvez.
Caso lhe perguntem quem você é, é possível que você responda o que faz, o que gosta, mas quase inevitavelmente você responde “de onde é”, seja para falar sobre um lugar ou sobre pessoas.
Com minhas “saídas”, a resposta para esta pergunta tem ficado nebulosa. Já escolhi, em outros momentos, não respondê-la. Não por grosseria, mas por ter cada vez menos interesse em delimitar quais partes “do que sou” pertencem a “quais lugares/pessoas”. Ao contrário, passei a me interessar por observar como o outro faz suas delimitações para responder a essa questão. E quantas respostas seriam possíveis de atribuir ao que somos, se todos nós estamos constantemente “saindo”.
Independente da resposta que cada um dê a esta pergunta, como não há rio ou pessoa que se mantenha imutável, o que responde ao “quem é você”, é aquilo que você ESCOLHE CONTAR.
Um famoso psicanalista ítalo-brasileiro, Contardo Calligaris, falecido em 2021, relata em uma de suas obras como nossa memória é “construída” por nós mesmos. Não que ela seja exatamente falsa, mas ela é muito impactada pela nossa perspectiva e por aquilo que conseguimos apreender através dela. E é a partir dela que nos definimos.
Enquanto brasileiro morando na Argentina, não consigo deixar de tentar imaginar como eles responderiam a essa pergunta: “quem são vocês?”. E como nós responderíamos de volta: “quem somos nós?”. E tudo isso me levar a pensar numa terceira questão: é possível dar a mesma resposta que eles? O que é possível dizer sobre nossas identidades que nos une? Ou então, que nos separa?
Na semana que eu escrevo este texto, o país em que estou celebra o “Dia da Memória pela verdade e justiça”, uma data em alusão às vítimas da ditadura militar argentina, celebrada no país desde 2002. Um dos lemas dessa data é a frase “Nunca mais”. Enquanto isso, no Brasil, nunca tivemos a recriação da comissão da verdade para investigar os mortos e desaparecidos na nossa ditadura militar; depois dela, tivemos outro governo formado por militares que cometeu outra série de crimes, e alguns de seus integrantes começam, ainda que muito lentamente, a responder por suas ações.
Existe um jargão recorrente a todos os simpatizantes da História, que prega “lembrar, para não repetir”. Para além do direito da memória, que parece essencial para nós enquanto coletividade, coloco a importância da memória como componente essencial de nossa constituição enquanto sujeitos.
Lembrar para não repetir. Lembrar para existir. Para que seja possível escolher como responder à pergunta “quem eu sou?”.
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