Segui adiante. Imaginei que não fosse comigo, na verdade nem entendi quais eram as palavras exatas. Apenas segui supondo ser um intruso na interação entre outros desconhecidos.
- Moço, por favor.
Parei no fim da calçada. O semáforo aberto me impedia de atravessar e seguir meu caminho até o primeiro restaurante que encontrasse. Tinha fome e não estava pensando em outra coisa senão comer.
- Moço, é uma ajudinha rápida, não vão ser nem dois minutos.
O semáforo insistia em estar aberto, fui vencido pelo cansaço. Quando me virei, três policiais, armados com fuzis, me olhavam de dentro de uma loja e um deles já me estendia o braço caminhando em minha direção. Provavelmente era o mesmo que já me chamava há algum tempo, quando eu ainda não pensava ser o interlocutor desse diálogo falho.
- É muito rápido, basta dar uma ajudinha pra gente - me disse.
- Oi, boa noite, hã, como assim? - comecei com uma tentativa de formalismo e descambei pra confusão mental.
- A gente precisa de duas testemunhas, só entrar na loja aqui um segundinho.
- Mas, é que eu tava indo pra lá…
- Não, é rapidinho, não vai demorar nada, entra aqui com a gente.
Ao entrar na conveniência, a única policial mulher tem um tablet nas mãos que está a postos para iniciar uma gravação. O dono da loja me olha com a mesma cara de dúvida que devolvo a ele. Nenhum de nós sabe o que está acontecendo exatamente, só os policiais.
Começa a gravação do tablet.
- Dia doze de maio, sexta-feira à noite, dez e cinquenta e seis - diz a policial.
O segundo policial, que até então estava calado, o chamarei de Grandão (acredito ser autoexplicativo), começa:
- Pacote com seis bolsinhas do que acreditamos ser cocaína, foi apreendido agora há pouco, em operação da unidade 3. Vamos começar o teste de pureza da substância.
Ele, então, revela o que parece ser um estojo, com seis saquinhos, medindo a metade de um punho fechado cada um, dentro. Retira um dos sacos, abre-o com um canivete, em cima da porta de vidro do freezer de sorvetes da conveniência.
- Vou abrir o frasco - diz ele, enquanto sai da loja e vai buscar o restante do material, que, pelo que parece, não estava com ele quando a gravação foi iniciada.
Baixinho (assim chamaremos os policial que me convocou para a gravação, também autoexplicativo), começa a explicar, cochichando, para mim e para o dono da loja, qual era o procedimento, enquanto nos passava uma prancheta com uma lista de dados a ser preenchida:
- Este é um procedimento de verificação da pureza de uma substância ilícita. Para realizá-lo, precisamos de duas testemunhas, por isso pedimos a ajuda de vocês. Vocês vão aparecer no vídeo que vamos fazer colocando a substância no líquido do frasco: quanto mais azul ele ficar, mais pura é a droga. Se ficar rosa, é porque não é droga, ou está muito diluída. Geralmente, é droga.
Grandão volta com outro tipo de estojo. Dessa vez, mais fino e transparente. Esse contém um conjunto de frascos, que por sua vez estão inseridos, cada um, em um estojinho menor, uma espécie de envelope, também transparente.
Grandão, que é a estrela do vídeo até então, tenta abrir os pequenos envelopes, sem sucesso. Há uma certa demora, mas ninguém se atreve a interromper a atuação do protagonista, justamente pelo mesmo pudor que impede que alguém diga algo em voz alta em um teatro, durante uma peça, ou em um cinema, durante um filme. No caso dos outros policiais, creio que não o faziam pois não sabiam como resolver o problema. No caso das testemunhas, além do pudor, o medo de entrar em qualquer tipo de saia justa no que era pra ser uma tranquila noite de sexta qualquer.
- Eu não consigo abrir esta merda - improvisa o protagonista.
- Vou ter que chamar o Chefe, chama ele lá, você consegue? Fiz uma bagunça aqui, vou arrumando enquanto você chama.
Baixinho sai da conveniência. Grandão usa os dedos da mão, que está coberta por luvas plásticas, como um tipo de rodo para juntar o pó branco que está um pouco espalhado pela porta de vidro do freezer de sorvetes. Sem dúvida, um pouco deve ter caído dentro dele, pelas frestas que já não vedam perfeitamente as aberturas que dão acesso aos sorvetes.
- Hehe, cuidado que o próximo que entrar aqui pra comer um sorvetinho vai sair doidão, hein? - diz, dirigindo-se ao dono da loja, que sorri constrangido.
Entra o Chefe:
- Que que tá acontecendo? Já fizeram o vídeo? - pergunta a Grandão.
- Então chefe, eu não consigo abrir o frasco. Eles mudaram essa merda; antes era só desrosquear uma tampinha, agora vem nesse envelope, eu não sei como abrir isso aqui, não estamos conseguindo finalizar.
- Mas eu também não sei por que motivo a gente precisa de tanto protocolo, eu recebi essa denúncia tem uns 4 dias já. Ali no meio do quarteirão tem essa trava que vende droga e a desgraçada é tão burra que vende no meio da rua. Nem precisamos entrar na casa nem nada. Tava lá com esse pacote cheio. - diz, olhando para nós, testemunhas, e esperando algum tipo de reação descontraída, que não vem.
- Você perguntou se ela tinha documento, chefe? - pergunta Baixinho.
- Tem o documento de quando era homem ainda.
- Mas não é mulher?
- Não, agora é mulher, mas nasceu homem, é uma trava…
O raciocínio do Chefe é interrompido por um estalo. Dentro do envelope, o vidro do frasco quebrou na mão sem luvas do Chefe. O líquido transparente sai, e junto com ele, sangue do dedo cortado.
- Puta que pariu, cortei a porra do dedo, mas ta aí, abriu essa merda. Dá aqui a droga, eu vou colocar o líquido, grava aqui ó.
Com a outra mão, sem luvas, Chefe coloca um pouco da substância transparente do frasco, em cima da substância ilícita, tendo que juntar um pouco, que estava espalhado, com o dedo ensanguentado.
- Aí ó, pronto, tão vendo? - de novo, buscando reações das testemunhas, e agora as encontra, ainda que tenham traços de estranhamento.
- Falei que era droga, tá azulzinho.
Observo a substância branca, de fato, ficando azulada e, depois, um azul bem forte, meio roxeado.
Chefe leva o dedo ensanguentado à boca, para conter o sangramento, levando junto também qualquer eventual resquício da substância que ali estivesse.
- Pronto, senhores. Assim que acabarem de preencher as fichas, estão liberados.
A gravação do vídeo é encerrada.
Saio caminhando pensando sobre o que caralhos acabou de acontecer na minha frente. Bom, minha assinatura e todos os meus dados estão registrados, assim como a data de hoje e minha imagem. Se não apagarem esse vídeo, não deve ser tão difícil provar que isso de fato aconteceu.
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