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Uma barata no poste

  • Foto do escritor: Augusto Casoni
    Augusto Casoni
  • 27 de ago. de 2022
  • 7 min de leitura

Renato e Caíque saíram do posto onde bebiam uma cerveja. Era uma quinta-feira que ameaçava chover, de céu nublado, daqueles perceptíveis mesmo à noite, mas de temperatura tão mediana quanto suas empolgações de responder às mesmas conversas que tinham já há bastante tempo; conversas-petisco, aquelas que só parecem servir mesmo pra acompanhar uma cerveja. Mas nem sempre são ruins.


Eram bons amigos. Quiçá, ótimos. Pensaram em ir num dos três possíveis bares para se frequentar na pequena cidade do interior. Decidiram pelo Adega’s – bar com ares burgueses, recém-aberto, na esquina de uma rua movimentada, onde outro dos três possíveis bares ficava próximo e, no caso de mudança de planos, aberto até mais tarde.


É o que há para fazer na cidade: beber. Embriagar-se, jogar conversa fora, cometer pequenas misoginias, arrepender-se delas, reforçar um vínculo bonito, porém agressivo em alguns momentos e esperar pelo que a vida possa oferecer. Lembremos que estamos um uma quinta-feira, afinal de contas.


O jogo que viram no posto tinha sido morno. Lá pela 8ª rodada do campeonato brasileiro, ou poderia talvez ser a 9ª. A 10ª. Havia uma fagulha de esperança que o Adega’s ofereceria algo de possibilidade. Uma fagulha ilusória, que mais existe para machucar do que para dar esperança, uma falsa vontade de tesão.


Ao chegar, pediram duas long necks, na dúvida se deveriam ou não sentar em uma das mesas daquele lugar semivazio de uma quinta-feira. Nenhuma mulher bonita, talvez sequer olhável; nenhum conhecido. A não ser por uma mesa. Serginho sentava ao lado da entrada principal do estabelecimento. Sozinho, de costas para a parede, tomava uma Brahma. De 600. Caíque, como sempre fazia com mais da metade da cidade, foi cumprimentá-lo. Os conhecidos, então, resolveram dividir a mesa, as cervejas e, por que não, as angústias.


Caíque começa: – Mas e a muié, Serginho, cadê?


– Cara, terminamo, cê acredita?


– Pô, como assim? Tavam bem demais.


– Ah, pois é mano, eu não entendo a Fran. Ela tem umas coisas assim sabe, muito ciúme. E é meio complicado, porque eu sou também, daí que a gente tava brigando muito sabe, acabou que não deu certo. Eu venho aqui, né, eu vim aqui, porque hoje ela foi pra outra cidade, só pra ir em festa, aí eu pensei, ah não, não vou ficar em casa, eu vou tomar uma, porque se eu ficar aqui é capaz que eu pego esse carro e vou lá ver ela. Mas também pelo menos ela num tá aqui hoje, aí não tem risco de ver sem querer também, que aí é ruim.


Renato entra na conversa: – Pô, cara, eu sei como é. É começo de término, é isso aí, eu já sofri muito com a minha também, mas chega uma hora que passa.


Serginho retorna: – Mas cê sofreu? Cê num namora, nunca vi... Ah, cê tá falando daquela lá ainda? A drogada?


Caíque ri, sem graça, Renato ri mais. Caíque não sabe muito bem como isso está estabelecido para Renato. Sabe que o amigo sofreu, sabe que a moça não vive bons momentos, mas ele não fala dela há tempos. Renato achou engraçado, riu honestamente. Só algumas semanas depois foi perceber o quanto essa frase foi importante em sua jornada de superação.


Serginho não tinha exatamente um passado “sóbrio”. Ele retoma:


– Eu, graças a deus, parei com essas coisas. Essas amizades aí, eu tirei tudo de perto de mim, porque não é amigo cara, e você precisa sair de perto senão não vai. Pra parar, tem que cortar tudo mesmo.


Caíque emenda: – É memo, Sergin? Mas num dá vontade nunca, não?


– Vontade dá, mas tá doido cara, depois que eu tô trabalhando agora, correndo certinho, tô feliz pra caramba no emprego, aí eu não quero mais pra mim isso, não. Só tamo na cerveja aqui que ninguém é de ferro também porque né…


Ao que Renato responde: – Pô, mas também, depois de um término ainda. Vou pedir outra até pra gente, pera aí, tem que tomar memo, ô bigode!


Alguns copos depois…


– Aquela ali, ó, tá vendo, aquela ali do outro lado da rua? Foi a que eu comi aquela vez que eu te falei lá – comenta, Caíque.


– Ah tá – Renato responde – foi boa?


– Boa, boa. Mas ah, sei lá, me arrependi um pouco depois. Cê nem lembra disso mais né, Sergin? Casado aí faz tempo, tem que voltar pra vida agora.


– Ô Caíque, mas cê sabe, desde aquele negócio da Ju cara, eu não sei o que acontece mano, mas tamo bebendo aqui, vou falar pra vocês. Eu não tô conseguindo muito, não.


– Tá brochando? – Pergunta Renato.


– Num é brochando, cara. Segue Serginho: – Até vai, sabe? Vai, mas é meio que sei lá, não é a mesma coisa.


Ju foi namorada de Serginho por dois anos. Numa noite de terça-feira, quando já não estavam mais se relacionando, morreu dormindo. Sem explicações.


– Foi muito foda pra mim, mano. É ainda.


Ninguém sabe muito bem o que dizer na mesa.


Eventualmente, Serginho vai ao banheiro. Caíque comenta com Renato: – Cê vai ficar aí? Vou vazar, mano, tenho aula amanhã cedo. Internato agora é foda, tem nada pra fazer, mas tem que tá lá. Renato responde: – Ah bicho, vou tomar mais algumas aqui, tá tranquilo, depois pego carona com ele.


Renato não queria ficar, mas tampouco queria ir. Era aquela fagulha ilusória, aquela falsa vontade de tesão. Serginho não era muito próximo, não era muito interessante, não era nada. Mas tinha cerveja e era uma quinta-feira. Estava de férias da faculdade, sem trabalho no dia seguinte.


Serginho volta, Caíque se despede, e os dois semi-conhecidos ficam ali. A conversa volta para o término, caminha pela perda e explode no trabalho.


– Mas pô, Renato, tô ganhando três pau e pouco, cara. Tá bom, né, tá bacana, mas acho que essa semana eu ganho um aumento, meu chefe veio conversar comigo, ele é parceiro, sabe? Diz que quer me levar com ele, acho que rola.


– Porra, show, bicho. Mas cê tá trabalhando com quê memo, ô Sergin?


– É programação né, fazendo programa. Mas tá massa. Aprendi sozinho, fiz uns curso. E tudo home-office né, agora tá na moda, mas é bom demais cara, pô. Olha que beleza: você trabalha a hora que você quiser. Você trabalha na sua casa, quando viaja, se for na casa da namorada... É liberdade demais, cara. Só tem a questão de cumprir as horas, né? Mas aí é a melhor coisa, olha a liberdade que eu tenho: eu acordo umas nove, aí começo, faço meu horário de almoço, meia horinha ali pelas onze, onze e pouco, já aproveito pra ir no banheiro aí também, e volto e fico até umas sete, é show. É muita liberdade cara, e tem o dia que, vai que você não consegue né, igual aquilo, tá na casa da namorada, como eu falei, chegou lá de madrugada e tal... Só pegar o PC e trabalhar! De madrugada mesmo, é liberdade, cê é doido, outra vida.


Renato responde, disfarçando a melancolia e resignação: – É, bom memo né.


Paira um silêncio.


Volta Serginho: – Ô Renato, fala sério, deixa eu te falar uma coisa. Se cai 10 milzinho na sua conta. 10 mil. Todo mês. Você dorme no dia 30, acorda dia primeiro e PÁ. Tá lá na sua conta. Dez pau. Precisa de mais alguma coisa, cara? Será que precisa? Tá maluco, se eu ganho 10 pau por mês eu tô feito. Porra, 10 pau.


Renato pensa um pouco demais pra responder. Tempo o suficiente pro questionamento deixar de ser retórico e para Serginho passar a esperar, de fato, uma resposta. É que, enquanto pairava o silêncio, Renato pensava em cometer um erro terrível: ser sincero, tentar mostrar sua verdadeira opinião. Quebrar a conversa-petisco. E então, num deslumbramento de coragem, resolve responder:


– Porra, Serginho, pra te falar a verdade cara, acho que precisa. Precisa de mais alguma coisa. 10 pau é muito bom, todo mês ainda, resolve muita coisa. Mas eu, sinceramente, não acho que isso é tudo não, cara. Eu não me submeteria a qualquer coisa, por exemplo, pra ganhar 10 pau. Eu acho que a gente precisa fazer algo que deixe a gente feliz. Infelizmente, pra muita coisa a gente precisa de grana, mas mesmo tendo, se você não tá fazendo um negócio que você acha legal, não vai, cara. 10 pau não vai ser suficiente.


Serginho se sente desconfortável na cadeira. Fica em silêncio por sete longos segundos: – Ah, cara, mas você só fala isso também porque tem tempo pra estudar, tem seu pai e sua mãe que tão aí pagando as coisa enquanto você estuda, se não tivesse, você ia entender. 10 pau cara. É muita grana, tá maluco.


Renato desiste e percebe o erro: – É, não, cê tem razão. É 10 pau, né. Muita grana.


Mais alguns copos depois…


Um homem de camisa social branca, calça e sapatos pretos, se aproxima do Adega’s. Serginho o reconhece. O homem, que estava vestido de garçom, cumprimenta efusivamente Serginho. Trocam abraços, palavras, até beijo na testa, e sentam os dois na mesa com Renato. Renato o cumprimenta. A conversa recomeça com Serginho.


– Porra, mas eu tava falando aqui agora pra ele, rapaz, você nessa vida sofrida aí de garçom, trabalhando até agora, fala a verdade, se num pinga 10 pau na conta, todo mês, num tá tudo resolvido?


– Tá doido, 10 mil conto? Eu fecho com 7 e meio!


A risada do garçom é alta e muito larga. Parece se divertir muito, chega a se exaltar demais às vezes. Renato, apenas escuta, mas na maior parte do tempo balança a cabeça, concorda e ri, chega a se divertir um pouco também.


Serginho segue: – E o Cristiano Ronaldo, rapaz. Quanto aquele cara num ganha?


O Garçom retruca: – E o tanto de mulher que não come também um cara desse? Rá, pelo amor de Deus. Lembra daquela vez que o Ronaldo foi num puteiro de Presidente Prudente?


É a vez de Serginho: – Que mané comer mulher rapaz, você tá casado não tem quanto tempo já? Nem sabe o que é isso mais!


Todos riem largamente. O álcool deixa tudo mais engraçado, machista e fácil. A conversa se demora em puteiro, mulher, casamento e trabalho. Renato olha para o lado.


A mesa está posicionada na calçada do estabelecimento. São mais de uma hora da manhã. Bem na frente da mesa, mais especificamente, do lado de onde Renato está sentado, tem um poste. No poste, um pouco antes do fim da pintura branca feita, provavelmente, pelas forças armadas de nossa grande nação brasileira, repousa uma barata. Parada. Está viva, é perceptível, porque está a mais de um metro e meio do chão, grudada no poste, mas parada. Renato se demora em olhá-la. Talvez mais do que deveria.


Quando volta a si, o garçom não está mais sentado na mesa, já se foi. Renato pergunta a Serginho: – Porra, Serginho, que figura! Muito gente boa. Da onde conhece?


– Ah, então cara, ele é parente da Ju. Na época em que a gente namorava fiquei muito próximo da família dela. Ele me trata como um irmão sabe, um irmão não, tipo um filho mais novo. Gosto muito dele.


– E como que ele chama mesmo? A cerveja já não tá deixando eu lembrar.


– Eu não sei, também.


Mais alguns copos são esvaziados. Serginho dá carona pra Renato, que havia deixado seu carro no posto. Renato desce, entra no seu carro para dirigir embriagado até sua casa. Assim como faz Serginho, depois de se despedirem rapidamente.


No carro, Renato lembra da barata no poste.


Uma porra duma barata num poste. Parada. Como se participasse da conversa.


Uma porra duma barata. Num poste.


 
 
 

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