The Rehearsal – O outro na possibilidade de si mesmo
- Augusto Casoni
- 4 de set. de 2022
- 6 min de leitura
Sempre que penso em escrever sobre alguma série ou filme procuro fazê-lo com a intenção de estragar o menos possível a experiência daquele que me lê e ainda não viu o material sobre o qual estou falando. Como letrista, isso me coloca frente à discussão se é possível ou não esgotar a experiência propiciada por uma obra. Afinal, é possível que algo tenha a mesma interpretação? Não teriam todas as coisas uma interpretação completamente única dependendo de quem assiste? Existe neutralidade?
Entretanto, acho que a problemática se simplifica (e quase deixa de existir) se a série sobre a qual vou tratar é The Rehearsal, de Nathan Fielder. Em primeiro lugar devido à variedade de temáticas; The Rehearsal é um dos documentários que mais fala sobre coisas diversas que já assisti. Este gênero que, muitas vezes, é utilizado para focar em assuntos objetivos, está completamente abstrato e aberto nesta produção.
Em segundo lugar, a problemática se simplifica mais ainda porque a série traz uma resposta definitiva a ela, ou à falta dela. Explico. Na verdade, tento, pois essa série está longe de poder ser explicada em outra mídia que não ela mesma. Algo que ela também deixa claro.
No “documentário humorístico” (termo que acredito que acharão se procurarem pela série no Google), Nathan Fielder, um roteirista/comediante (?) canadense, se coloca à disposição para ajudar um homem comum a resolver um problema. Este homem comum é um aficionado em “shows de perguntas e respostas” (tipo o Show do Milhão do Silvio Santos) e faz parte de um grupo de aficionados como ele. Seu problema é que, com medo de ser ridicularizado pelo grupo, o homem mentiu sobre sua formação para uma amiga, dizendo que tinha mestrado. Ele quer resolver o desconforto causado pela mentira longeva contando a verdade a ela.
Por mais que pareça uma questão simples, ao longo do primeiro episódio, vamos entendendo que não é; pelo menos não para aquele homem pitoresco e com muita falta de traquejo social. A verdade é que, ao longo da série, figuras pitorescas e esquisitas continuarão aparecendo, incluindo o próprio Nathan, um homem bem complexo (melhor termo que encontro para defini-lo).
Se até aqui tudo parece muito estranho, te garanto que piora. Isso porque, a solução que Nathan oferece para ajudar na resolução do problema é um “ensaio”. Com a estrutura propiciada pela produtora para fazer a série, Nathan propõe que o homem ensaie todas as possibilidades de fatos que podem ocorrer no dia marcado para o encontro com a amiga. Dessa forma, o esquisito homem, apaixonado por programas do Silvio Santos, poderia estar preparado para toda e qualquer situação e ficar mais seguro para enfrentar a revelação que nunca fez.
Para o ensaio, Nathan propicia uma experiência surreal. O bar em que o encontro foi marcado é montado cenograficamente em um estúdio de maneira idêntica (idêntica a nível manchas na parede iguais e almofadas desgastadas de bancos também). Os frequentadores do bar são representados por atores figurantes e, inclusive a amiga, também é representada por uma atriz (que dias antes marca um encontro com uma desculpa qualquer com a amiga real para estudar a pessoa que vai interpretar). A interpretação dos atores e atrizes contratados para os ensaios é sempre impressionante! Muito próxima do que podemos entender das características das pessoas reais.
Com todo o cenário montado, Nathan passa a ajudar nos ensaios de possíveis falas, atitudes e abordagens para que a conversa tome o melhor caminho possível. A verdade é que, o que já parece bizarro se torna mais bizarro ainda quando sabemos que a conversa inicial que Nathan tem com o homem já foi previamente ensaiada pelo roteirista em um ensaio que ele montou para si mesmo, em uma réplica da casa do homem e com um ator interpretando seu futuro interlocutor. A partir daí, passamos a desconfiar o tempo todo do que é simplesmente uma interlocução despreocupada e natural imaginando que pode ser resultado de um planejamento meticuloso e detalhista.
Assim como acredito que a série faça conosco em vários momentos, vou frustrá-los e não dizer qual é o desfecho desse cenário. Mas na verdade ele não importa: é tão irrelevante que se resolve no primeiro episódio, e é no segundo que, para mim, a série começa de verdade.
Com o mesmo propósito (ajudar pessoas a resolverem questões importantes através de ensaios) Nathan começa o ensaio de Angela, uma mulher com um grande desejo de ser mãe e morar em uma casinha afastada da cidade. Todo o cenário é montado e, inclusive, “atores bebês” são contratados, o que faz com que a produção do programa precise montar um esquema de trocar os bebês por outros assim que são colocados no quarto após determinado tempo com sua “mãe de ensaio” (afinal são bebês e não podem passar muito tempo longe de suas famílias).
Após alguns problemas para encontrar quem poderia ser o “pai” da simulação de Angela, o próprio Nathan se voluntaria e ela concorda. Os dois passam, então, a participar do ensaio de ser uma família.
Conforme “o tempo passa” (os atores bebês são trocados por crianças mais velhas, depois por adolescentes etc), mais problemas ocorrem e Angela se afasta da experiência, restando a Nathan viver seu próprio ensaio como pai solteiro.
Em determinado momento, após muitas loucuras, detalhes e metalinguagens (Nathan não para de fazer ensaios de outras pessoas em outras situações enquanto faz seu próprio ensaio), uma das “crianças atores” fica muito chateada em ter que abandonar as gravações da série. Nathan busca entender a situação de perto e, ao conversar com a mãe da criança, descobre que o menino nunca teve contato com o pai, vendo nele a figura paterna que nunca teve, por isso a dificuldade de abandonar as gravações e voltar a viver apenas com a mãe.
Para tentar entender o que poderia ter feito de diferente para evitar isso, Nathan se coloca no lugar da mãe do menino (passa a interpretá-la) e coloca outros atores para interpretá-lo e interpretar o próprio menino. É nesse jogo maluco de mímica e repetição que a série chega em um de seus momentos mais bonitos para mim, que também é seu desfecho de temporada.
Enquanto interpreta a mãe e conversa com o seu filho (ator que interpreta a criança mais nova que não queria parar de gravar), Nathan tem uma bonita conversa sobre a aceitação de que aquele homem (ele mesmo) não é o pai verdadeiro do garoto. Está tudo bem ficar triste e se arrepender de ter participado daquela experiência, pois isso mostra que a criança tem coração, é sincera e pode confiar em outras pessoas. E, principalmente, Nathan reforça que tudo vai ficar bem porque ele está ali. Ele é seu pai!
Nesse momento, o ator sai do personagem e questiona “você não era minha mãe?” Nathan reafirma que não. “Eu sou seu pai”.
Recomendo a todos que assistam. O que tentei relatar aqui não é 30% do que a série fala e não sou capaz de chegar além disso, acredito. Os personagens são muito intrigantes, as “pessoas reais” também e, por muitas vezes, ficamos confusos sobre o quanto daquilo tudo é roteirizado ou não.
Mas aquilo sobre o que eu queria escrever hoje, acho, está nessa última cena. Aquilo que responde, ou não, à problemática de existir um não alguma visão inequívoca sobre algo, ou, no mínimo uma interpretação que possa ser a mesma para duas pessoas diferentes.
O documentário, ao tentar nos aproximar da visão que o outro tem sobre o mundo, parece nos mostrar o quanto é impossível fazê-lo. Você pode, literalmente se colocar na pele de alguém e, mesmo assim, não será capaz de prever o que a pessoa pode fazer, como ela está se sentindo, ou o que está pensando sobre você. Entretanto, isso não significa que se colocar no lugar de outra pessoa não é recomendado, ou muito menos indesejado.
Pelo contrário! Tentar entender o próximo é se colocar cada vez mais próximo de você. Apenas ao fazer o máximo para tentar entender a experiência da MÃE do menino, foi que Nathan pôde entender o que, para ele, é a experiência de ser PAI.
A série me lembrou um texto que tive que ler essa semana para uma matéria da faculdade. O nome é “A função hermenêutica do distanciamento”, de Paul Ricoeur. Apesar de um título indigesto, o texto é muito bonito e, entre outras coisas, fala sobre como a literatura deve ser encarada como uma possibilidade de enxergar o outro. Entretanto, esse outro, essa alteridade, não passa de uma possibilidade de nós mesmos que não existe no momento. Algo que só a literatura (ou podemos entender como a arte) nos proporciona. Ler, é enxergar o outro na possibilidade de si mesmo e, portanto, assimilar-se.
Que texto bonito escreveu Nathan Fielder!
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