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O Coloquialismo Erudito: brasileirês

  • Foto do escritor: Augusto Casoni
    Augusto Casoni
  • 28 de dez. de 2020
  • 3 min de leitura

“Queria dizer só uma coisa é programa de esporte, ô Bruno Covas, você que é prefeito, se o seu vô tivesse vivo você ia tira a passagem do seu vô de graça? Cê ia dá quarenta e cinco de aumento po cê? Ainda mais numa pandemia como nós tamo rapaz, como é que pode tira a passagem dos idosos? Gente não pode, num momento como esse todos nós precisamos ser solidários, em relação às pessoas que tão num momento tão difícil da vida. A gente tá vendo a vacina chegar pra Argentina, vamo perder pra Argentina?


A Sputinik chegou pra Argentina, nós vamo perde? Aí, cada um que faça o que quer, que pense do jeito que quiser. Então a gente precisa...eu falar verdade, esse final de semana foi um final de semana difícil, que eu vi aquela juíza ser morta por um canalha vagabundo, safado, na frente dos três filhos [...] vocês fica bravo comigo porque eu vou ser o pior comentarista, o melhor, porque é donos da bola, é o curintia [...] cê imagina só, pô vê o cara dá dezesseis facadas cara, e ninguém faz nada, o país não para por causa disso! Uma juíza! Uma juíza! E ninguém vai fazer nada? Ninguém vai mudar nada aí no Senado? Vai continuar a mesma zona? Vai continuar e a gente acha normal, não é normal cara, não é normal! Não é normal! Seiscentas e quarenta e oito mulheres são assassinadas todo os, quer dizer, nesse ano de 2020.


Aí, a Argentina tem vacina e nós não. Aí nós tamo morto né, vei! Daqui a pouco nós perde po Paraguai. Hã? Daí ocês acredita em papai noel, né? Então, cês que fique com o papai noel lá de cima ou o de baixo! O de baixo eu piso na cabeça! A minha abertura não é nem com o futebol, a minha abertura é pra nós pessoas. Gente, o futebol ta inserido em tudo!”


Assim ele termina a sua fala. Longuíssimas aspas – ainda foi preciso adaptar certos trechos e cortar eventuais apresentações a convidados do programa – mas também acuradas. Craque Neto, ex-jogador do Corinthians e atual apresentador do vespertino “Donos da Bola”, do canal aberto Band, começa assim seu programa. Uma segunda-feira de mais um dia de Brasil na pandemia.


“O futebol tá inserido em tudo”. É muito além do genial que, em uma segunda, pós rodada do brasileirão, um apresentador de programa esportivo ache espaço para comentar, ao menos, dois assuntos de relevância nacional em seu programa. Fora tangenciar uma meia dúzia de mazelas atuais do país. Tudo isso justificado pela frase que inicia o parágrafo.


Neto não faz rodeios. É direto. Sua primeira interpelação é ao prefeito. Bruno Covas recentemente retirou a gratuidade das passagens a idosos em transporte público. Algo que já seria, no mínimo, controverso em qualquer contexto social, parece ainda mais cruel naquele em que vivemos. E logo o apresentador segue a ele – uma pandemia. Ainda comentará o assassinato de uma juíza por seu marido – mais um caso de feminicídio.


O raciocínio do apresentador é confuso. Neto gagueja, começa frases que não vão a lugar nenhum, faz metáforas futebolísticas, solta palavrões, elabora frases que talvez nem ele entenda (“então, cês que fique com o papai noel lá de cima ou o de baixo! O de baixo eu piso na cabeça!"). E é impossível que qualquer outro comunicador fosse melhor entendido do que ele. Neto é claríssimo porque fala brasileirês.


Não quero aqui menosprezar o carisma do apresentador – jamais! Mesmo falando sobre o esporte o ex-atleta cativa. Mas o que Neto faz hoje em dia, talvez melhor que qualquer figura pública, é falar brasileirês.


O português tem regras, recomendações, pausas, normas. O brasileirês não se escreve, o brasileirês se fala, o brasileirês utiliza metáforas futebolísticas porque sabe que é o maior esporte do mundo e somos nós quem somos os maiores nele; é coloquial, é barulhento, arde, sai com raiva, sem pausa, sem regra. O brasileirês se sente!


É nítido como Neto sente. No mesmo dia, em um programa noturno na tevê fechada, o mesmo apresentador – talvez já mais dentro de sua expertise – comenta sobre a decisão de Neymar de dar uma festa para centenas de pessoas em plena pandemia. Mais um monólogo digno de teatro, aqui não transcrito para evitar que o texto se transforme em artigo.


Precisamos de mais Netos! Não apenas na televisão. Precisamos de mais brasileiros fluentes em brasileirês. Uma língua que todos falamos muito bem, mas que muitos ainda se negam a, ou fingem não, entender.


Agora, pelo amor de deus! Deem um programa de rede nacional pra este homem.

 
 
 

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