Nós não perdoamos as formigas
- Augusto Casoni
- 17 de out. de 2022
- 3 min de leitura
Sentou-se em sua escrivaninha para escrever. Ao abrir o word, teve dúvidas sobre que fonte usaria. Perdeu bons três ou quatro minutos escolhendo aquela que mais lhe agradava. Nada das usuais, mas também nada muito extravagante. Era preciso ser original, mas apenas na medida certa. Quem fiscalizaria sua originalidade? Ora, ele mesmo. E é claro que todas as escolhas seriam erradas.
Digitou as primeiras duas linhas e teve fome. Resolveu buscar algum lanche na geladeira, afinal já fazia três hora que tinha almoçado. Pensou em um pão com presunto. Não havia comprado pão, muito carboidrato. Tinha comprado uma massa fina, fininha, daquelas que se usam para fazer os agora famosos “wraps”, um “embrulhado”. Teve preguiça de elaborar esse lanche. Preferiu uma maçã. Saudável, prática. Levou a maçã consigo até o computador, na escrivaninha.
Ao chegar a ela, pensou sobre onde deixaria a maçã. Voltou até a cozinha, pegou o que ele costumava chamar de pirex, ou quiçá uma tigela, e usou para apoiar a maçã quando não a estava mordendo.
Abriu o e-mail. Visualizou duas novas mensagens. Duas contas a pagar. Ignorou-as. Não costumava usar o Facebook, aliás fazia meses que não postava sequer uma foto ou opinião por lá. Mas abria-o todo dia. Avaliava as notificações e fechava. E foi o que fez.
Quando então, de repente, ouviu o barulho da máquina de lavar. As roupas estavam limpas. Demorou 20 minutos para estendê-las. Colocou algumas na secadora, outras no varal, já que nem todas cabiam na secadora. Decidiu lavar o resto de louça que ficara na pia na noite anterior.
Pensou que precisava lavar também as roupas de cama enquanto lavava a louça. Seria difícil secá-las, o tempo estava úmido e elas não cabiam na secadora. Lembrou-se da maçã. Resolveu terminar de comer a maçã antes de continuar a lavar a louça. Terminou a maçã, e depois a louça.
Sentou-se novamente em sua escrivaninha, em frente da sua janela. Olhou quase todas as janelas dos dois prédios vizinhos que ficavam diagonalmente posicionados em relação à sua escrivaninha. Resolveu abrir o site de notícias antes de voltar a escrever.
Clicou em qualquer uma das manchetes.
Uma formiga invadiu seu campo de visão. Vinha do lado de fora da janela, provavelmente escalou toda a parede de fora do pequeno prédio e ali estava. Na janela dele, no segundo andar. Agora subindo em sua escrivaninha.
Era incômodo. Não conseguia voltar a escrever enquanto aquele ser estivesse ali, invadindo sua privacidade, seu pensamento, sua intimidade, sua vida. De repente, num delírio de grandeza, numa ilusão de importância, se achou no direito de acabar com a vida daquele pequeno e inofensivo ser vivo.
Por ser muito pequena, não conseguia dar um peteleco no inseto de maneira que o jogasse de volta ao chão, abaixo dos dois andares de altura de sua janela. Derrubou a formiga da escrivaninha arrastando a mão pelo móvel. Quando ela caiu no chão, o golpe veio rápido. Pegou seu chinelo com a mão, que não estava em seu pé e esmagou a pequena. Não foi capaz de perdoar a intromissão quase microscópica na lisura de seu procedimento de lazer.
Ao voltar sua visão para a janela, uma bala perdida atravessou o vidro fazendo um barulho estridente. Cacos voaram em seus olhos, ombro e peito. A bala alojou-se bem no meio de sua testa. Não saiu de lá. Sua cabeça caiu para trás, apoiada na cadeira. Transformou-se em um corpo cujos braços caídos denunciavam a falta de vida.
Na tela de seu computador lia-se:
“Empresário bilionário, Elon Musk, anuncia a compra da rede social Twitter por 44 bilhões de dólares (cerca de 230 bilhões de reais)”.
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