Café e a delinquência da juventude
- Augusto Casoni
- 14 de ago. de 2022
- 4 min de leitura
Ao longo do tempo, eu me informei do fato de que todo mundo tem refluxo. É um processo natural no organismo. Às vezes, por qualquer que seja o motivo, comemos demais e o excesso faz com que o estômago precise “reorganizar” seu espaço para propiciar a digestão. Para isso, a válvula que o separa do esôfago afrouxa um pouco, permitindo que um pouco do que está ali volte e sobre espaço. Não acredita em mim? Fica à vontade pra pesquisar, se não for exatamente isso, é algo bem parecido.
A questão é que, em algumas pessoas, isso é recorrente, o que não é bom para a saúde como se pode imaginar. E não há uma causa específica. Claro que má alimentação, excesso de peso, excesso de bebida, todos esses fatores podem ser contribuidores, mas não são determinantes. Tanto este é o caso, que é possível que você tenha refluxo e não apresente nenhuma dessas condições.
É o meu caso. Deixemos entre parênteses a parte do excesso de bebida, mas não tenho sobrepeso e minha alimentação é bem regular. Por algum motivo, meu organismo desenvolveu uma hérnia de hiato. Eu tampouco sei exatamente o que é, mas já fiz uma cirurgia para corrigi-la, e tudo correu bem. O intrigante é que, mesmo após a cirurgia, a pessoa pode conviver com os sintomas para sempre, então é preciso manter alguns cuidados pra evitar incômodos.
O meu refluxo é muito pequeno. Algumas pessoas têm dores, tossem muito, chegam a soluçar. Não é o meu caso. Era um refluxo pequeno, segundo um médico, só de alguns gases estomacais, e eu nem mesmo conseguia entender o que eu tinha. Mas ele me causava algo muito bem determinado: dor de garganta. Também tive que tirar as amígdalas para evitar infecções recorrentes.
Dentre aquilo que podemos fazer para evitar o refluxo está o ato de evitar consumir bebidas com cafeína. E é aqui que meu texto começa. Minha relação com o café.
Se você é universitário, vai me compreender. O café é, para alguns, uma religião. É uma bebida saborosa, é um estimulante, é uma droga, é um reafirmador de bom gosto, é um discriminador de caráter, é um instrumento de convivência.
Tomar um café não é apenas um ato alimentar. É um ato de comunhão. Comprometer-se com um ideal, seja ele qual for: “tomo café sempre sem açúcar; com açúcar, só para aqueles de paladar infantil”; “tomo café pois estou terrivelmente cansado mas não quero perder tempo, vou me dar um ‘boost’, vamo pra cima deles”; “vou comprar um cafezinho porque essa aula está chata e eu quero dar uma espairecida”. Tomar um café é, sempre, ser parte de algo maior.
Pois bem. Eu consigo tomar um cafezinho de vez em quando, e tudo fica bem, mas devido a meu histórico, nem sempre é prazeroso. Aliás, na maioria das vezes, quando ocorre recorrentemente, não é.
O que não me impede de seguir tomando.
Já tomei café de manhã porque acordei cedo demais e “tinha tempo”. Já tomei café ao descer do ônibus, na porta da faculdade, porque nunca tinha experimentado o “daquele senhorzinho simpático que vende ali na escada”. Já tomei café porque me deram uma cortesia para experimentar o famoso “café da física”. Já tomei café porque perdi uma aposta com uma amiga e, ao pagar o café, comprei um pra mim. Já tomei café quando, logo depois de comentar com um amigo que nem sempre ele faz bem, fui respondido com um “eu sei, mas eu sou jovem”, e quis me envolver na delinquência da juventude.
E, muitas vezes, além de me incomodar, ele me dói. Faz-me questionar o porquê de eu estar fazendo isso; por que insistir no erro? Estou me punindo por algo? Ou, pelo contrário, estou me proporcionando um prazer momentâneo, uma regalia, mesmo sabendo que a consequência não é interessante?
Minha relação com o café me faz pensar em outras relações que estabeleço em minha vida. Por que não assumimos algumas posturas, mesmo sabendo serem as melhores?
Eu tentaria uma resposta de falta de amadurecimento. Ou então poderíamos caminhar pela falta de consciência sobre “a importância de cuidar do corpo para ter um futuro saudável”. Mas faz sentido eu me privar de algo agora, para ter algum tipo de prazer depois? E o prazer do agora? Mas e o arrependimento do prazer de agora?
Essa semana, ou na passada, ou há anos (a depender de quem me lê), morreu Jô Soares. Em um de seus programas, após a morte de seu filho, Jô estava lá, trabalhando mesmo assim. Ao final, em uma fala emocionada, o apresentador relata um episódio em que seu filho, após ser repreendido por estar pegando livros demais para comprar, diz ao pai que não queria escolher apenas alguns entre todos que pegou. Quando o pai lhe pergunta o porquê, ele devolve com a seguinte frase: “porque escolher é perder, sempre”.
Acredito que pior do que escolher, é a capacidade de compreendermos que estamos fazendo escolhas. Já que elas são inevitáveis! Estamos sempre perdendo, e sempre iremos perder, mas o que dói é compreender isso.
A garganta me dói, mas também me dói a escolha de tomar ou não aquele café.
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