Ainda que me custe muito, dois mais dois nunca será quatro.
- Augusto Casoni
- 14 de fev. de 2023
- 4 min de leitura
É o primeiro Dostoiévski que leio.
Confesso que fiquei um pouco perturbado. Não que o livro seja assustador, eu mesmo antes de ter lido qualquer coisa dele tinha essa impressão, e eu acho que isso fez com que eu dotasse algumas partes da obra de um obscurantismo que talvez não tenham. Pelo menos não externamente. O Pavor em Dostoiévski, agora que o li, me parece ser interno e não externo. E não no interior dos personagens apenas, mas talvez e principalmente de nós mesmo.
Para quem não leu ou nunca ouviu falar acho que vale o comentário de que, para muitos críticos, o autor russo precedeu as teses de muitos filósofos. Principalmente em Nietzche e em Freud encontramos muito Dostoiévski, ou vice-versa. Talvez não vice-versa pois o russo os precedeu.
Enfim, todo esse emaranhado de palavras pra dizer o seguinte: muitas vezes você pode até não entender o raciocínio que o personagem do cara tá te propondo ali, mas aquilo vai te tocar em algum lugar. E é aí que eu recomendo a todos os leitores que estejam preparados. Talvez Memórias do Subsolo seja seu primeiro indício de que a terapia está funcionando, ou quem sabe um sinal para inicia-la.
A novela é curta e muito simples. Dividida em duas partes, na primeira seremos apresentados ao personagem principal: o homem do subsolo. Sempre narrando tudo em primeira pessoa e dirigindo-se a um plural (nós leitores? Toda a humanidade? Seus superiores?) este homem nos apresentará a sua visão de mundo. Um ex-funcionário público, com seus quarenta anos de idade, e que acredita que sofre de alguma doença do fígado. Acredita porque não tem certeza. Não tem certeza porque não vai ao médico. Não vai ao médico porque não acha que deva viver além dos quarenta anos. Tem raiva de sua existência e de sua mediocridade. Chega a achá-la uma vergonha.
Nesta primeira metade da obra, o homem do subsolo nos desenha toda sua filosofia. Eu mesmo me perdi em muitos momentos, e acho que fica mais fácil de entendê-lo seguindo a leitura e analisando os episódios narrados na segunda parte, mas se fosse resumir sua filosofia, faria da seguinte maneira: o homem do subsolo é um homem amargurado; inteligente, bem articulado, nunca conseguiu ter nenhuma realização relevante na vida. No entanto, apesar da consciência de sua mediocridade, consegue achar-se melhor que todas as outras pessoas, justamente pela certeza que tem da própria mediocridade.
É como se o fato de ter consciência do quão patética é a existência humana o colocasse em uma posição privilegiada. No entanto, justamente por ter consciência disso, ele se apequena e ao fazê-lo coloca-se em uma posição inferior a tudo e a todos, o que gera uma pessoa suscetível, amarga e muito frágil.
A consciência da vergonha de nossa existência parece girar em torno do fato de que, para este homem, a característica que melhor define um ser humano é sua capacidade de ser insensato. De fazer merda, em bom português.
Você poderia dar a um homem tudo que ele precisa para ser feliz que, mesmo assim, caso ele não tivesse a possibilidade de ser caótico, de ser insensato, de fazer merda, ele não estaria feliz. E é aí que o homem do subsolo nos faz questionar sobre o quão essencial do humano é a sensação da infelicidade, de estranheza, de insegurança, de ódio, de desconforto.
E o personagem nos mostra como é movido por essas sensações ao longo da segunda parte da obra. Ele nos mostrará como é mesquinho, como tem baixíssima autoestima, como é covarde, mas principalmente, como é babaca. Sente-se superior a tudo e a todos mas tem vergonha de seu próprio rosto porque se acha feio. Sente inveja de um ex-colega de infância, que até pode ser um babaca também, mas faz questão de ir a uma festa em sua homenagem e estraga o clima sentindo-se atacado a cada frase de cada pessoa.
Porém, o ápice da novela é seu desfecho. Após envolver-se com uma prostituta, com arroubos de eloquência e envaidecido de si mesmo, o homem do subsolo convence-a de que pode ajudá-la. Chama-a a sua casa para tirá-la daquela vida indigna. No entanto, covarde como é, confessa à moça que não sabe o que fazer, não sabe como ajudá-la, nem mesmo sabe porque a chamou até lá; confessa que é medíocre, que tem vergonha de si mesmo e pensa que é mau, que maltrata os outros, que se sente melhor que todos. E sofre por isso. E sofre naquele momento.
A moça se compadece, lhe dá um abraço, acolhe-o. E ele, como o canalha que é, joga-lhe dinheiro, como se estivesse pagando pela visita. Tratando-a indignamente, como um ser inferior.
Um homem detestável, mesquinho, assombrado por sua mediocridade e ainda assim arrogante, agressivo e covarde ao mesmo tempo, suscetível e frágil. Um homem que detestei e não compreendi em boa parte da novela.
Que faz o possível para provar que, se ele quiser, dois mais dois nunca serão quatro. Ainda que isso custe sua sanidade e bem-estar. Alguém que faz questão de buscar sua própria humanidade.
Um homem em que pavorosamente me reconheci.
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