Achamos o limite da Schadenfreude? Escolhas.
- Augusto Casoni
- 5 de nov. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 27 de nov. de 2022
Imagino, caro leitor, que você tenha se deparado com esse termo ao menos uma vez essa semana. “Schadenfreude” ou, em tradução livre (o que significa dizer que usei o google tradutor), “alegria maliciosa” é uma expressão alemã, língua ótima em aglomerar expressões para todo e qualquer tipo de sensação: eles têm uma palavra única para “sorriso sem graça” (honigkuchenpferd), um verbo para definir a “sensação de vergonha alheia” (fremdschämen) e uma palavra para definir “o cansaço específico do começo do ano” (frühjahrsmüdigkeit).
Em homenagem a um colunista que admiro muito e que também escreveu sobre isso essa semana, deixo aqui a definição de Chico Barney para o termo: “’Schadenfreude’ é um termo em alemão que expressa a alegria que sentimos quando alguém se dá mal. Não é algo muito bonito da parte de ninguém, mas um elemento fundamental e inescapável da experiência humana. E tem muita gente que faz por merecer esse tipo de reação, não é possível negar”.
O colunista escrevia sobre o reality show “A Fazenda” quando fez o uso do termo. Eu, no entanto, me dirijo a algo talvez um pouco menos lisonjeiro e importante: as manifestações golpistas pós-eleição do presidente Lula.
Foram inúmeras as manifestações de sofrimento dos golpistas que nos fizeram (aqui considero as pessoas de bom senso; ou no caso dos que não gostaram do resultado, os bons perdedores e democratas) esboçar sorrisos e, talvez algumas vezes, gargalhar ao longo da saborosa semana.
Comemorações baseadas em notícias falsas de “confirmação de fraude”, lamentações, choros e pessoas ajoelhadas rezando com o resultado confirmado das urnas, exaltações e gritos eufóricos com, pelo menos, três ou quatro confirmações de que o ministro Alexandre de Morais seria preso... E sigo: policiais militares batendo continência para golpistas civis de meia-idade, hino nacional sendo entoado para um pneu parado no meio da rua, civis marchando como se fossem parte de uma espécie de “carnaval conservador-militar”, uma galhofa!
Diante disso tudo, foi muito difícil esconder o deleite dessa semana! Diverti-me muito com cada vídeo que aparecia em minhas redes sociais, desde a senhorinha surtando com o “no comunismo não tem segunda-feira”, até o patriota sendo levado agarrado na frente de um caminhão até sabe-se lá onde. No entanto, acho que me esgotei. Justamente quando me deparei com o vídeo do hino nacional sendo entoado para um pneu, senti uma sensação estranha. Cheguei a tuitar que, apesar de sempre ter me achado uma pessoa que se diverte bastante com o sofrimento alheio, já estava começando a me envergonhar um pouco. Ou, como diriam os alemães, a sentir “fremdschämen”.
A questão que se impôs para mim é: por quê? O que mantém essas pessoas ainda ali? Não me parece que se convencem nem um pouco com as notícias falsas que recebem. Muitos, sim, talvez acreditem no calor do momento, mas não bastam algumas horas de realidade para a inexorável VERDADE se impor e Alexandre de Morais não ser preso, nenhuma “fraude” aparecer e, nem ao menos, “o exército tomar o poder”.
Obviamente creio que existam inúmeras respostas para isso. Talvez todas estejam corretas, talvez nenhuma delas, e, sem dúvidas, elaborá-las não é tarefa simples, mas contribuo (por favor mantenhamos as devidas proporções desta ironia) para o esforço dos futuros historiadores e sociólogos com um excerto de relato pessoal desta primeira sexta pós-eleição.
Aqui em Porto Alegre, está acontecendo a 68ª Feira do Livro. Segundo descrição do próprio evento, assim ele ocorre: “a Praça da Alfândega, que abriga essa que é uma das principais feiras a céu aberto da América Latina desde 1955, receberá 71 expositores, mais de 150 autores e uma grande programação que inclui diversas atrações culturais. Os principais temas discutidos pela sociedade e os grandes lançamentos da literatura compõem uma ampla programação. Um dos pontos centrais dessa edição são as comemorações pelo aniversário de Porto Alegre.” Sobre o patrono, Carlos Nejar, segue a descrição: “autor de quase uma centena de obras, produzidas em mais de seis décadas dedicadas à literatura, o escritor porto-alegrense Carlos Nejar é o patrono da 68ª edição da Feira do Livro de Porto Alegre. Ocupante da cadeira número quatro da Academia Brasileira de Letras, é reconhecido pela riqueza de seus textos, entre poesias, ensaios, contos, críticas literárias e literatura infantojuvenil”.
Visitando a Praça da Alfândega, acabei esbarrando por Olívio Dutra, ex-prefeito de Porto Alegre, ex-governador do Rio Grande do Sul e ex-ministro das Cidades, escolhendo livros na seção de promoções com obras a não mais que dez reais; e pela monja Coen Rōshi, líder budista e escritora, reconhecida atualmente por diálogos inter-religiosos e promoções de campanhas e palestras com objetivos de conscientização ambiental e busca pela pacificação de diferenças religiosas e de pensamento, que se dirigia ao início de mais uma de suas palestras.
Caminhando um pouco mais pela rua 7 de setembro, cheguei à casa de cultura Mario Quintana, que, segundo seu próprio site, tem o início de sua história “em julho de 1980, com a compra do antigo prédio do Hotel Majestic, pelo Banrisul. Em 29 de dezembro de 1982, o governo do Estado adquiriu o imóvel do Banrisul e, um ano mais tarde, em 1983, o prédio foi arrolado como patrimônio histórico, tendo início, a partir de então, sua transformação em Casa de Cultura. Seus espaços estão voltados para o cinema, a música, as artes visuais, a dança, o teatro, a literatura, a realização de oficinas e eventos ligados a todas as formas de arte. Eles homenageiam grandes nomes da cultura do Estado do Rio Grande do Sul”.
A não mais que 500 ou 700 metros de onde ocorria a feira, e não mais que 200 metros de onde está localizada a casa de cultura, ocorria uma dessas manifestações que tanto nos divertiu essa semana. Resolvi passar por lá. Ao chegar, escutei o que parecia ser o hino à bandeira, ou talvez qualquer marchinha militar, difícil definir, sendo tocada em caixas de som, com um volume tímido, devo dizer. Ainda no começo da aglomeração, que devia ser de umas 200 pessoas, as primeiras palavras que escuto em uma conversa são as seguintes: “não, porque diz que é o Elon Musk que pode fazer isso daí, agora, se é verdade eu não sei...”
Não pude escutar mais que isso.
Longe de querer estabelecer alguma unanimidade de juízo de valor sobre as figuras que citei no texto, mas tendo como base as oportunidades de atividades para se realizar apenas nesta tarde de sexta, ali naquele raio de não mais que 1km, apenas concluo que tanto as mais ou menos 200 pessoas do protesto, como eu e muitos outros que estavam na feira e na casa de cultura fizeram escolhas diferentes.
Escolhas.
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