A casa frente à Igreja
- Augusto Casoni
- 7 de ago. de 2022
- 6 min de leitura
Era de madeira. Mas não era bem feita, bem estruturada. Eram pedaços de madeira fina, muito fina. O avô de Alessandro subiu aquelas paredes e aquele teto bem na frente da igrejinha fazia uns 68 anos. As paredes não deviam ter mais que 2 centímetros de espessura. E mesmo assim duraram os 68 anos! Foram fortes o suficiente para serem testemunhas de três gerações da família Silva. Quatro contando o Rafael, filho de Alessandro, que ainda morava com o pai.
Moravam em cinco na casinha. Isso quando a namorada de Rafael também não estava lá. Alessandro, Rosana, sua esposa, seu Francisco, pai de Alessandro, Rogério, cunhado de Alessandro e Rafael, que de vez em quando levava sua namorada Sandra para passar a tarde tomando uma cerveja e escutando música. Não conviviam em mais do que senão quatro cômodos separados por frágeis paredes de madeira, uma garagem sem carro, um quintal aos fundos e algumas cadeiras à entrada.
Alessandro não ia à igreja. A cidade interiorana havia crescido nesses 68 anos, assim como a igrejinha. Primeiro mudaram a pintura na parede de entrada. Uma bela Nossa Senhora, toda colorida, substituía o azul claro sem graça da pintura original. Depois ampliaram o espaço do coral, ganhando alguns metros quadrados suficientes para ampliar as fileiras de bancos onde sentavam os fiéis. A última modificação tinha sido a rampa ao lado dos degraus de entrada para auxiliar na acessibilidade dos cadeirantes. Muita gente frequentava a antiga igrejinha, Alessandro preferia não passar pelo transtorno de atravessar a rua e se apertar nos devotos bancos.
Não apenas a igrejinha já não tinha mais nada no diminutivo, como também a vizinhança de quase sete décadas muito se modificou. A casa de Alessandro era a única de madeira. Seus vizinhos eram outras residências, essas de tijolos e concreto, alguns mercadinhos, uma confeitaria, e até uma academia de muay thai. Alessandro não fazia ideia do que era muay thai, apesar de que seus praticantes pisavam todos os dias em sua calçada, dada a proximidade com a academia. Ele chamava de “academia de luta”.
Estando já aposentado por invalidez e com seus 54 anos, poucas coisas mobilizavam aquele homem corpulento e devagar. Sua grande barriga de cerveja dificultava ainda mais os passos que dava com suas pernas de tamanhos diferentes - três significativos centímetros que o tiraram da carreira de eletricista cinco anos atrás. Aos 49 já não conseguia conciliar o trabalho e o peso de sua barriga. As dores eram lancinantes após o fim do expediente.
Acostumou-se com a vida de aposentado e a casinha de madeira na frente da igreja, assim como o aparelho de som que tinha comprado com o acerto do patrão, eram grandes responsáveis pela tranquilidade que sentia. Alessandro gostava de sentar na cadeira, frente à porta da sala e observar as pessoas entrando e saindo, quando não da igreja, do posto de combustíveis na bifurcação da avenida. Ligava o som, escutava ao longo da tarde sua rádio favorita, tomava algumas, e amém!
A aposentadoria, pouco maior que um salário mínimo, não possibilitava muito mais do que isso. Também sua moradia não lhe alimentava nenhum tipo de ambição. A casa enfeitiçava seu dono: era como se olhar para aquelas paredes, algumas até mesmo um pouco empenadas pelo tempo, retirasse toda e qualquer perspectiva de mudança de vida, de mobilidade, de impulso, de vontade. Ao mesmo tempo que imobilizava, trazia segurança. Era frágil, era pequena, mas era da família Silva. Uma boa localidade, perto de mercadinhos, a alguns minutos do centro, beirando a bifurcação da avenida onde tinha um posto, do lado de uma academia e na frente da igreja.
Das mudanças que sofrera a igreja, a que mais incomodava seu Francisco era a rampa. O velho não podia com a ideia de ver aleijados frequentando um lugar santo. Era um absurdo! Estando ele também já pelos seus oitenta e sete anos, absurdo seria se não se revoltasse contra a passagem do tempo – acessibilidade, que bobagem! Lugar de aleijado é em casa, ele que reze de lá! O próprio seu Francisco não ia à igreja já há um bom tempo, mas pregava contra o bom senso com o mesmo fervor da fé de um cônego. Além da rampa, as alunas de muay thai eram outro alvo constante da intolerância do idoso. As roupas leves e, por vezes, curtas, eram ensejo para resmungos de mais de meia hora durante a janta com a família. Alessandro administrava a situação muito bem: a cada reclamação do pai, murmurava lenitivos e afirmações, quase que sem vontade de abrir a boca, num gesto automático – “é isso aí”, “mas também não é pra tanto”, “complicado né”, “verdade”. O maior problema é quando Sandra estava presente. A moça não poupava xingamentos ao velho – machista, misógino, podre, velho safado, rabugento, brocha, e daí pra baixo... Situação que também era magistralmente contornada por Alessandro! Com a mesma tática inclusive, repetindo lenitivos e afirmações – “é isso aí”, “mas também não é pra tanto”, “complicado né”, “verdade”.
Rosana e Rafael eram mais ativos na tentativa de apaziguar o choque de idades. Rosana, vendo em Sandra a revolta da mulher que nunca foi – casou-se aos 16 anos com Alessandro e viveu de manicure toda sua vida naquela casinha de madeira – defendia a visão da menina e pedia a seu Francisco para que pegasse leve com as palavras, ele não conhecia as pessoas de quem estava falando. Rafael pedia o mesmo para o avô – apesar de que, de uns tempos pra cá, estava se reconhecendo cada vez mais na moralidade dele: aquelas roupas eram realmente muito curtas, não gostaria de ver Sandra fazendo muay thai; talvez os cadeirantes realmente fossem um estorvo, mas não era tão radical quanto o avô, não queria confiná-los, via já uma boa solução em fazer uma igreja só para deficientes, por que não? Cada um em seu devido lugar. Mas não externalizava suas opiniões. Primeiro, porque tinha medo da reação da namorada, segundo, porque não ligava o suficiente para nada disso. “Deixa o velho resmungar, não sei porque a Sandra briga tanto com ele, até tem sua razão...”
Rogério era nada mais que um peso. Diferente de Alessandro, Rogério era inteligente, agitado e bem disposto... o problema é que simplesmente escolheu nunca fazer nada de bom em toda sua existência. Pelo menos, não para os outros. Mudou para a casa logo após o casamento da irmã. Alessandro, à época, imaginava ser coisa de dias, mas ele foi ficando. Pouco ficava em casa. Saía todos os dias, voltava todas as madrugadas e gastava tudo que ganhava. Aliás muito mais do que ganhava pois não trabalhava e vivia de fazer agrados à irmã ou pedir adiantos ao cunhado. Esta não resistia – admirando a inteligência do irmão, tinha certeza que o mês ia ser diferente! “Toma Rogério, é quase tudo que ganhei dessa cliente, compra uma roupa vai arranjar um bico”. Nunca era! No fundo ela até sabia que não seria, mas não conseguia lidar com esse pensamento suficientemente bem para agarrá-lo como verdade.
Alessandro via a situação de maneira diferente! Lidava com o cunhado com maestria! Era Rogério vir falar com ele, que já tirava o dinheiro da carteira e lhe dava à mão - assim evitava o possível incômodo de ser enganado, ou pior, de não ser enganado e ter de fingir que foi. Pra que se dar a esse trabalho? No fim das contas, o resultado era o mesmo: Rogério juntava algumas centenas de reais que lhe seguravam o mês.
Assim vivia a família Silva. Entre frágeis paredes, resmungos, revoltas, trambiques e insatisfações, Alessandro levava sua vida com muita tranquilidade, lidando com tudo muito bem e vendo o tempo passar com serenidade. Tinha sua rádio, sua cerveja e sua casinha, era um homem que precisava de muito pouco!
Ocorre que a pacata cidade interiorana foi alvo de uma quadrilha que rouba bancos em cidades interioranas. Numa manhã de segunda-feira, ouviu-se tiros por toda a cidade, bombas explodiram, pessoas foram feitas de reféns e policiais assassinados. Tudo isso passou como um furacão! Das cinco da manhã ao meio-dia, o banco já havia sido saqueado, todo o dinheiro levado e seu Francisco tido um enfarte do miocárdio. Aparentemente, o velho não era apenas intolerante ao tempo, mas também a fortes barulhos e situações de quase morte.
No dia seguinte, após o velório, Rafael decidiu que era uma boa hora de revelar que Sandra estava grávida e que tinha sido expulsa da casa dos pais. Rosana não conseguiu lidar com tantas informações – chorou por dois dias seguidos e resolveu voltar pra casa de sua mãe, a 1500km da pacata cidade interiorana que fora escolhida como ótimo alvo pela quadrilha que rouba bancos em cidades interioranas.
Pela primeira vez, Alessandro não soube como lidar com a situação. Em uma madrugada de quinta-feira, sentado em uma cadeira na frente de sua casa, olhando para a bela imagem de Nossa Senhora, toda colorida, Alessandro teve vontade de ir à igreja. Pensou em chorar. Levantou-se. Esboçou um movimento para dentro de casa, para botar a camiseta e atravessar a rua.
Olhou para as paredes. As frágeis paredes que não deviam ter mais que 2 centímetros de espessura, algumas até mesmo um pouco empenadas pelo tempo. Resolveu pegar uma cerveja, ligar baixinho o aparelho de som, afinal era madrugada. Desistiu de atravessar a rua e sentou na cadeira, na frente de sua casa. Era frágil, era pequena, mas era da família Silva.
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